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As Cortesãs (yūjo) do Período Edo - Conheça a História destas Mulheres e dos seus Textos!

O texto a seguir sobre as yūjo, cortesãs do Período Edo, foi escrito e fornecido por Juliana Valverde. Juliana é bacharel em Letras Português-Japonês pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) tendo realizado intercâmbio de língua e cultura japonesa na Universidade de Osaka com uma bolsa do Monbukagakusho. Foi participante do JET Programme onde atuou como intérprete e tradutora durante seis anos. Mudou-se para a Índia em 2013, onde lecionou japonês e português na Universidade de Bangalore, além de outros trabalhos com a língua japonesa. De volta ao Brasil, concluiu a pós-graduação em Estudos Japoneses (UFRJ) e o mestrado em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atualmente, é mestranda em Estudos Japoneses e professora assistente de língua japonesa na Universidade do Colorado- Boulder.

E-mail para contato: juliana.valverde@colorado.edu


Juliana ainda é responsáveis por outros projetos de divulgação e produção de conhecimento, que você pode conferir nos link abaixo:




Seguindo as pegadas das cortesãs (yūjo) do período Edo

Juliana Valverde


Cortesãs do Período Edo - Japão
Foto das yūjo sendo exibidas em Yoshiwara, do início do séc XX

Durante o Japão pré-moderno, prostitutas ou yūjo (遊女), como assim são chamadas, foram exaustivamente representadas em diversas obras literárias, roteiros de peças teatrais e em pinturas chamadas ukiyo-e (浮世絵). Dentre as pinturas ukiyo-e, há centenas delas retratando as yūjo lendo livros ou escrevendo cartas. Além disso, em Shikidō ōkagami (色道大鏡), um dos livros mais completos sobre os bairros de prostituição deste período, o autor Fujimoto Kizan declara que: “É lastimável que uma pessoa não saiba escrever, mas para uma cortesã, é um desastre!”


Isto me leva a levantar alguns questionamentos: 1) Como estas mulheres eram educadas? 2) Se os mestres do ukiyo-e eram tão obcecados em representar prostitutas lendo e escrevendo, seria este um indicador de que elas deixaram algum material escrito? Sendo assim, com o intuito de provar que estas imagens não são meras construções do imaginário da época, eu embarquei em uma missão para descobrir materiais escritos pelas próprias yūjo, mulheres estas, cujo trabalho era vender sonhos enquanto viviam em um verdadeiro inferno. A intensa pesquisa por materiais escritos pelas yūjo me levou até alguns poemas, cartas e trechos de diários escritos por elas, de períodos variados. No artigo de hoje, eu venho apresentar aos leitores poesias escritas por uma yūjo chamada Asajiu (浅茅生), que desfrutou de bastante destaque na composição de kyōka (狂歌), sendo até elogiada por um dos grandes nomes desta arte. Porém, antes de adentrarmos na produção escrita das yūjo, vamos conhecer um pouco mais sobre a vida destas mulheres.


Cortesãs do Período Edo - Japão
Cortesã lendo uma carta. Autor: Torii Kiyomasu I

O caminho até tornar-se uma yūjo (遊女)


Com a legalização dos bairros dos prazeres por todo o Japão, sendo os principais nas províncias de Osaka, Quioto e Edo (atual Tóquio), muitas prostitutas migraram para estes bairros. Porém, por fora, acontecia outro sistema: o de recrutamento de meninas para trabalhar nas zonas autorizadas. Agentes contratados pelos bordéis percorriam diversas províncias em busca de meninas que futuramente trariam grande lucro aos bordéis. Estas meninas vinham de famílias pobres e o trato era o seguinte: o agente visitava a família, falava do interesse na menina, oferecia uma quantia de dinheiro e assim, ela era vendida.


Para a maioria das famílias, ter uma menina era um fardo e uma boca a mais para alimentar. Mas, se vocês estão achando muito cruel os pais venderem suas filhas, vale a pena mencionar que a sociedade japonesa da época era baseada em conceitos neo-confucionistas. Dentre eles, estava o de piedade filial (chinês: 孝 xiào). Este conceito de sacrificar-se pelos pais era visto como uma grande virtude e as filhas que assim o faziam, ainda que fossem vender seus corpos, eram vistas com muita admiração pela família e pela sociedade como um todo. A piedade filial era tão importante que o xogunato criou o Kankoku kōgiroku (Registro Oficial de Piedade Filial), uma lista de indivíduos em todo o país que foram elogiados pela piedade filial desde a fundação do regime até o momento da compilação do registro. Os premiados eram majoritariamente homens, mas as mulheres também foram elogiadas, a grande maioria na categoria “piedade filial” ou “castidade” (Yonemoto, 2016, p. 23).

As futuras yūjo chegavam aos bordéis quando ainda tinham 7, 8 anos de idade e tinham sua estreia como cortesãs por volta dos 14 ou 15 anos. Dentro dos bordéis onde iriam trabalhar, elas recebiam treinamento em diversas artes: caligrafia, poesia clássica, shamisen, dança tradicional, etc. Havia uma rígida hierarquia dentro destes bordéis e poucas chegavam ao sonhado título de Tayū (太夫), o mais alto patamar que uma cortesã poderia alcançar. Além de uma beleza física estonteante, ela deveria ser uma exímia artista, realizando com perfeição todas as habilidades artísticas aprendidas durante seus anos de treinamento. Ela também era a única que poderia recusar um cliente. Para encontrar-se com uma cortesã deste calibre, era preciso muito dinheiro. E por isso, somente aristocratas e homens de alta patente conseguiam tal feito. As demais cortesãs, cada uma tinha um título o qual lhe atribuía algumas vantagens. Abaixo das Tayū, mas também consideradas cortesãs de alta patente estavam as tenjin (天神) e kōshi (格子). Cheias de estilo, elas eram as influencers da época. Mulheres também visitavam esses bairros para ficar a par com as últimas tendências da moda e arte.


Cortesas do Período Edo - Japão
Cortesãs (taiyū) passeando sob as cerejeiras com suas acompanhantes mirins (1781-1789)

Entretanto, a vida dessas meninas era muito dura e sem perspectiva de futuro. Sua dívida com o bordel só aumentaria à medida que ela subisse na hierarquia, já que seu guarda-roupa luxuoso e em constante mudança, que exigia até quatro ou cinco camadas de quimonos usados ​​de cada vez, e as gorjetas e honorários para seus atendentes eram dela. Encargos financeiros também. Forçadas a trabalhar muitas horas mesmo quando estavam doentes ou menstruadas, as mulheres destes bairros dos prazeres tinham que cumprir uma cota diária ou seriam multadas. Independente da patente dentro do bordel, a maioria delas sofria de doenças venéreas e passavam por verdadeiras sessões de tortura como práticas abortivas caso engravidassem. Muitas acabavam falecendo antes de completar trinta anos de idade.


As yūjo e os clubes literários


Ainda que não houvesse grandes perspectivas de futuro para elas, é surpreendente o fato de que dentro de seu limitado mundo elas conseguiam criar poesia e arte. Um dos estilos mais populares de poesia durante o período Edo, foi o kyōka (狂歌), uma espécie de poesia tanka de cunho satírico. E foi justamente nesta categoria que algumas yūjo se destacaram. Haviam vários clubes de poesia espalhados pelo país e Yoshiwara, o bairro dos prazeres, também tinha o seu que era geralmente liderado pelo dono de um dos diversos bordéis. Estes clubes de poesia estavam ligados aos grandes clubes do país, que realizavam muitas competições de kyōka, divulgando mensalmente um tema sobre o qual a poesia deveria ser escrita. As melhores obras seriam avaliadas por um comitê, selecionadas, compiladas e publicadas em um livreto. Alguns destes livretos estão disponíveis para consulta nos arquivos de bibliotecas pelo Japão.


Cortesãs do Período Edo - Japão
Ryūkashū (柳花集) - Aqui vemos nitidamente o nome de Asajiu e sua poesia em uma das páginas principais. As poesias publicadas em páginas ilustradas eram privilégio apenas dos melhores.

Cortesãs do Período Edo - Japão
O nome de Asajiu aparece aqui como júri do comitê de poesias

Foi graças a estes arquivos, que chegamos a alguns dos nomes de cortesãs que participavam ativamente destes concursos. É aqui que surgem os nomes de Asajiu (浅茅生), Mahito (真比登), Hanazome (花染) e outras. Estas e tantas outras cortesãs tiveram suas obras selecionadas e publicadas nestes livretos. A mais famosa dentre elas, chamada Asajiu, não só teve várias obras selecionadas para publicação, como também chegou a fazer parte do comitê avaliador de poesias. É curioso o fato de que na época, os autores de kyōka assinavam seus poemas com nomes artísticos ou usando ideogramas que fizesse lembrar sua profissão. No caso das yūjo, isto não era possível e elas assinavam com os nomes pelos quais eram conhecidas nos bordéis onde trabalhavam. Ironia do destino ou não, graças a isto, podemos reconhecer suas obras facilmente quando pesquisamos um livreto de poesia kyōka.


Sem mais delongas, vamos conhecer uma poesia da yūjo Asajiu, retirada da coletânea Ryūkashū (柳花集), de 1837, cuja tradução é inédita em língua portuguesa:


青柳の影さす道を (Aoyanagi no kage sasu michi wo)

見返らて うわさ堤を (Mikaerate uwasazutsumi wo)

行く人やなそ     (yuku hito ya na so)


No caminho sob a sombra do salgueiro  

Ele não olha para trás

E pelo aterro dos boatos

Lá vai ele…..Por que? (tradução nossa)


Apesar de esta poesia kyōka não ser exatamente satírica, ela segue todo um jogo de palavras de acordo a temática da coletânea Ryūkashū, onde Ryū, 柳, é salgueiro, um dos símbolos de Yoshiwara, o bairro dos prazeres. Na leitura do poema, há outras alusões ao bairro, como o aterro (tsutsumi), passagem obrigatória para entrar ou sair do local.


A habilidade de Asajiu com as palavras nos faz pensar em todo o refinado treinamento que as yūjo recebiam durante sua vida. Treinamento o qual permitia que elas produzissem beleza em meio ao caos, expressando assim, sua individualidade e sentimentos.


Hoje, não temos mais yūjo nem os antigos bairros dos prazeres, mas o cemitério onde há diversos túmulos destas jovens ainda existe em Tóquio, próximo ao Templo Asakusa.

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